Clara deitou-se as onze e dezoito na segunda-feira. Sabia que teria aula bem cedo no outro dia, mas não sentia sono. Pensou em ler o livro que cairia na prova e por algum motivo ela não havia terminado de ler, mas não conseguia se levantar. Seu corpo estava pesado e preso à cama. Seus olhos procuravam incansavelmente algo no teto branco e limpo, mas não encontravam nem as sombras projetadas pela luz do corredor.
Seu dia foi normal. Acordou e marcou presença física em todas as seis aulas de cinqüenta minutos, além do recreio. Olhou atentamente para todos os professores enquanto falavam, copiou as matérias do quadro, ouviu todas as palavras que entravam e passavam pelo aparelho auditivo sem efeito algum. Falou com os amigos, pensou em coisas engraçadas e legais para dizer e não disse nada que pudesse gerar uma conversa de fato. Então, como em todos os dias, nos intervalos e no recreio deitou a cabeça sobre a carteira e tentou dormir.
Ao chegar em casa, Clara esqueceu tudo que lhe acontecera pela manhã, como de costume. Ela havia criado a teoria de que seu cérebro era seletivo em relação às lembranças: se não fosse algo que chamasse muita atenção, sumiria da memória. Claro que muita coisa ainda sobrava, mas esse pensamento ajudava a justificar pra si mesma o motivo de esquecer praticamente tudo que acontece durante o dia. E era só pra si mesma que ela justificava, já que ninguém levaria essa história a sério. E nunca fazia bem compartilhar esses acontecimentos já que todos julgavam falta de interesse, sendo que nem todos o faziam em voz alta.
Ela não conseguia dormir nem conseguia se levantar da cama. Algo de diferente tinha acontecido, mas ela não conseguia lembrar. Procurou por horas com os olhos fixados no teto até que se esqueceu de pensar no que deveria estar pensando. Agora ela só conseguia ver o teto: grande, branco, limpo, homogêneo. Tentou descobrir o porquê de estar ali deitada na cama já de madrugada sem dormir. Tentou achar o motivo daquela falta de ar, como se um carro estivesse pressionando seu peito; ou a razão pela qual sentia algo de muito estranho na garganta, como se precisasse gritar. Por algum tempo ela sentiu raiva. Então fechou os olhos e tentou dormir.
O relógio marcava três da manhã quando ela levantou num impulso violento. Seus olhos doíam, como uma câimbra por tê-los forçado a ficarem fechados. Ela não sabia o que estava acontecendo, não se lembrava muito bem do seu dia. Foi até a cozinha tomar um copo com água quando viu seus materiais escolares em cima da mesa. Sentiu um frio na barriga ao lembrar das provas para as quais deveria ter estudado. Os materiais estavam intocados. Tomou um gole de água e jogou o resto fora ao constatar a completa falta de sede.
Voltou para o quarto sem olhar para a mesa, pensando nas provas. Aquela sensação horrível de medo e impotência, como se fosse impossível acordar bem no outro dia tomava conta dela. Seu único desejo era desaparecer completamente, ou pelo menos conseguir dormir e esquecer aquele aperto no peito por um tempo. Não sabia de onde vinha aquele medo todo, não poderia ser apenas pelas provas. Também não sabia por que não tinha estudado. Não tinha lágrimas nos olhos, não tinha sono, tudo que ela tinha era um sentimento de desgraça sem motivo aparente.
Deitou-se novamente na cama, virada para o lado do computador. Pensou em ligá-lo quando começou a chorar. Aquele medo, de onde vinha? Medo de tudo, até do computador que estava no seu quarto há mais de dois anos. Medo da escola, medo das pessoas, medo de amanhã. Fechou os olhos e parou de pensar. Naquele momento surgiu um novo medo: o medo de descobrir o motivo de tudo aquilo. Concentrou-se na sensação de calor que o choro provocava no seu rosto, até não pensar em mais nada. Dormiu.
O sol já havia tomado conta do quarto dela quando acordou. Passou a mão no rosto, notando o suor. Estava descoberta, mas os raios pareciam apontar diretamente pra ela e o calor era imenso. Clara respirou fundo, fechou os olhos, esticou os braços e as pernas e se levantou para ir tomar banho. Já no chuveiro tremeu de medo ao perceber que com certeza estava algumas horas atrasada. Seu quarto ficava iluminado apenas à tarde. Mas já estava no banho então terminou o ritual de limpeza com cuidado.
Enxugou o corpo com a toalha branca, enrolou-se e saiu. Olhou para o quarto estranhando o silêncio. Ela estava calma, a casa estava calma. E isso era no mínimo inédito. Saiu do quarto vestindo apenas a toalha e isso também era novidade por ali. Caiu no sofá da sala, colocando a mão no peito. Alguma coisa estava acontecendo. Seus pais deveriam tê-la acordado, a escola deveria ter ligado pra perguntar o motivo da falta. Lembrou-se da noite passada, da insônia e do medo. Como poderia estar tão calma agora?
Sua teoria sobre o motivo dos esquecimentos tinha falhado. Algo sem importância não causaria aquela confusão toda da noite passada. Mas agora o sentimento era outro. Ela pensou em se levantar do sofá e ir até o quarto dos pais, o que seria inútil, pois com certeza eles não estavam lá. Se estivessem, teriam-na acordado. Clara fechou os olhos e tentou lembrar daquilo que deveria estar escondido em algum lugar dentro de si. Foi até a janela e não viu o carro. Provavelmente não estavam lá cedo, quando ela precisava acordar. Também não havia nenhum bilhete, ou seja, alguma parte do seu cérebro escondeu as informações sobre o paradeiro dos pais.
Foi até o quarto deles, que estava arrumado. Olhou no armário: meio vazio e lá em cima não tinha mala nenhuma. Eles viajaram, ela não sabia pra onde nem o motivo, nem se havia um motivo em especial; mas era a única explicação. Isso poderia significar que não tinha acontecido nada demais em relação a eles, já que ninguém viaja e deixa uma adolescente sozinha se não estiver tudo em ordem. O colégio poderia ter ligado sem conseguir acordá-la do sono pesado. Parecia tudo relativamente normal, além do fato de estar de toalha no quarto dos pais numa terça-feira à tarde.
Já vestida, Clara decidiu comer alguma coisa. Sua boca estava amarga e até então ela não tinha notado as náuseas. Isso tudo poderia ser simplesmente uma intoxicação alimentar associada à tensão pré menstrual, pensou. Correu até o calendário e concluiu que, definitivamente, não estava na época de ter tpm. Foi aí que uma possibilidade assustadora de explicação lhe surgiu: gravidez. Pegou o telefone e ligou para o namorado:
- Oi.
- Oi, Clarinha. Como você tá? – ele perguntou num tom dramático.
- Muito estranha, mas por que você perguntou isso?
- Ué, Clara, não tem muito o que dizer nessas horas. Desculpa pela pergunta, eu sei que é meio boba, mas eu realmente fico meio perdido... Você quer que eu vá até aí?
- Aconteceu alguma coisa? Porque eu não sei mesmo, é sério, eu to meio estranha, meio perdida, to passando mal, eu to grávida? Você sabe o que foi? E você não perguntou por que eu não fui à aula, então você sabe...
- Clara, o que ta acontecendo? Eu não to entendendo nada. Que história é essa de grávida? Amor, eu vou aí pra gente conversar.
Desligaram o telefone e ela sentiu-se mais confusa ainda. Ele sabia o que aconteceu com ela e pelo jeito não era gravidez. Se isso era uma conclusão boa ou não, ela não sabia. Poderia ser pior ainda. Esperou no sofá até ele chegar, evitando tirar mais conclusões precipitadas.
- Meu amor. – Ela recebeu logo na entrada um abraço forte.
Sentaram-se no sofá, calados. Ele tentou deitá-la no colo, mas ela não quis.
- Por favor, me conta o que aconteceu comigo.
Ele se virou, olhando nos olhos dela. Passaram-se mais alguns longos segundos silenciosos.
- Clara, como assim?
- Eu sei que aconteceu alguma coisa porque desde ontem... Me fala, por favor, eu to ficando louca. Eu não sei o que aconteceu comigo, mas estou em desespero desde ontem!
Ele não sabia como dizer, nem que parte de tudo ela havia esquecido. Tinha medo de repetir palavras trágicas e mais medo ainda de vê-la realmente desesperada, como na outra vez. Não conseguia entender como ela não se lembrava daquilo. Pensou em levá-la ao médico antes de dizer, mas ela deveria estar se sentindo péssima.
- Clara, você tomou o remédio hoje?
- Que remédio?
Ele se levantou e foi até a cozinha, pegou o remédio e um copo com água. Ela ficou sentada no sofá. Quando o viu, bateu no copo, quebrando-o e jogou o remédio no chão.
- Não vou tomar isso se você não me disser o que está acontecendo.
- Você se lembra de ter passado mal no final de semana?
- Não.
- Você deveria ter tomado esse remédio e passou mal. Teve sérias dores de cabeça, mas combinamos que eu não contaria aos seus pais se você prometesse tomar direitinho. Por isso eles viajaram com calma e te deixaram aqui. Eu fiquei de vir todos os dias ficar com você o maior tempo possível.
- Pra que serve o remédio?
- Pra memória.
- Claro... mas isso é sério?
- O que exatamente?
- O que eu tenho.
- Não. Pode ficar calma.
Satisfeita com a resposta tomou o remédio. Passaram um dia estranho juntos, tentando esquecer o que tinha acontecido. Ele fez tudo certo, cuidou da namorada e não tocou mais no assunto. Ela tentou não pensar nisso até que seus pais chegassem.
Clara acordou assustada na madrugada. Ela tinha uma doença degenerativa no cérebro e tinha acabado de se lembrar disso. Lembrou-se de crises horríveis e de que há muito tempo não tinha nada assim. Começou a chorar quando as cenas passaram pela sua cabeça, cenas que a doença não tratou de apagar. Não entendia como e por que tinha se lembrado de tanta coisa naquela hora e não parava de pensar nas suas possibilidades de futuro. Não tinha boas expectativas e sentia que estava para piorar. Todas aquelas imagens terríveis mostravam que a vida dela não poderia melhorar. Ficou horas sentada no sofá chorando e pensando. Não era isso que ela queria viver pra sempre.
Seus pais voltaram de viagem em seguida. Duas mortes inesperadas acabaram com suas vidas. Sentiam-se culpados. O namorado sentia mais ainda.